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terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Música Armorial

Quando iniciamos nosso trabalho no campo musical, nosso objetivo era estudar a música brasileira, em particular a do nordeste, e, conhecidos seus sistemas rítmicos, harmônicos e melódicos, criarmos uma composição renovadora. O nordeste talvez seja a região do Brasil que menor influência externa recebeu – a não ser quando da conquista e colonização. Os elementos que aqui ficaram foram amalgamados e reinterpretados. Outros foram escolhidos e acrescentados pelo nosso inconsciente coletivo. E até os elementos trazidos pelos chamados meios de comunicação sofrem os mesmos processos de escolha e assimilação. 
A cultura popular é dinâmica e viva – não acadêmica e imóvel. 
Na música do nordeste, a influência dos povos árabes é muito forte – trazida que foi pelos ibéricos, principalmente, talvez, os de sangue judeu, ligados à tradição do datino. 
Nos aboios, por exemplo, nota-se a presença das escalas de sétima menor e quarta aumentada, características muito antigas da música de velhas comunidades asiáticas. Outra marca é a tendência para evitar a sensível, e assim não realizar a tão comum cadência dominante-tônica da música ocidental. Note-se ainda a presença, no nordeste, do chamado pedal harmônico, ou zumbido, tão comum na música de civilizações primitivas, que lhe atribuem um sentido transcendente, cósmico. Também as persistências rítmicas e melódicas, de importância fundamental para se atingir um clima de transe e dança – tudo isso se unindo para criação de uma música orgânica, que é apreendida intelectualmente depois de atingir e envolver todo o corpo. 
A esses elementos asiáticos e primitivos, que aliás reencontramos, levados pelos árabes, na música ibérica e na provençal, vêm se juntar outras características da música medieval - o canto em terças e certas passagens em quartas e quintas - paralelas. Mais, puramente nossa, já, é a escala maior-menor muito encontrada na música nordestina.
Uma outra preocupação nossa foi o instrumental que usaríamos. Se tudo iria ser recomeçado, por que não criarmos um novo núcleo de instrumentos, um núcleo que não fosse o tradicional quarteto de cordas europeu? 
Assim nasceu o Quinteto Armorial. Cinco instrumentos de presença bem marcante nas manifestações musicais do povo do nordeste foram eleitos e convocados a participar dessa primeira experiência. Novos timbres seriam experimentados, outras linguagens se revelariam, fornecendo-nos novos dados para uma composição organizada, que rompesse as barreiras entre música erudita e música popular - uma música que estivesse mais próxima da nossa realidade cultural, erudita, enquanto concepção e elaboração, popular no seu sentido mais amplo, forte, verdadeiro e profundo.

MADUREIRA, Antônio José.
Contracapa do LP Aralume,

12 comentários:

luana disse...

Seria possível ainda no estilo armorial, fazer músicas com outros tipos de instrumentos? talvez também com instrumentos de outros países ou até com outros que sejam de origem antiga?

Virgínia Picasso disse...

Muito interessante como uma atividade, inicialmente simples, pode proporcionar tantas descobertas, envolvendo os alunos a buscarem mais sobre nossa cultura e apreciar um estilo musical considerado por muitos "fora dos padrões modistas da atualidade".

Marcos Alfeu disse...

Gostei do texto, por ser uma introdução ao movimento armorial, que me interessa muito e me aprofundar nos seu elementos compositivos da pintura ou artes plasticas.

Jeanny disse...

Um resumo bem feito que contextualiza esse movimento que precisa estar sendo resgatado e para as novas gerações porque seria a erudição do universo popular pernambucano. Esteticamente bem elaborado e que preenche os sentidos em todas as linguagens que a contemplaram.

Dinara P Sobrinha disse...

Nada mais simples e natural, do que iniciar o Movimento Armorial com a Música. Se vê claramente o estudo profundo das influencias e composição musical, claras e próprias da nossa Região Nordeste. Resta-me agora, tentar "definir" e encontrar a influencia do Movimento nas outras linguagens da Arte.

Dinara P Sobrinha disse...

O texto aborda um pouco do que influenciou a música armorial, algo que é uma verdadeira mistura de influências estéticas.

Emmanuel Lima disse...

A música armorial possibilita o contato com uma música de construção bem elaborada e fruto de muita pesquisa. As sonoridades produzem sempre pontes para lugares diversos, o conhecidos, o popular, erudito e o desconhecido dentro de espaços híbridos, ricos em suas possibilidades, significações.

Anônimo disse...

Hélio disse ...
Realmente é uma estética única, nossa, precisamos valorizar e estudar.Gosto da parte visual, musical e da linguagem, lembra bastante o sertão nordestino.
me remete aos ferros de marcar os animais, os causos contados pelos mais antigos e as cantorias com as violas. Muito bom nosso encontro de hoje.

Soraia Michelli disse...

Entendendo O armorial

Passando por uma linha do tempo, vejo que o Movimento Armorial nasce numa investida em transformar a musica folclórica numa versão refinada aos moldes europeus, porém com uma estética barroca, numa perspectiva contemporânea, é necessário entender a complexidade das culturas étnicas antes de rotulá-las de popular,porém é necessário reconhecer o talento e virtuosismo dos compositores desse movimento. Nessa dicotomia de inversão de valores e relação de poder o discurso acadêmico se faz mais forte por ter como divulgadores as mídias elitistas, que não entende a dimensão dessa movimentação. Por outro lado o que poderia ser algo de dimensão universal fica restrito aos intelectuais.

hermanuel disse...

O Movimento Armorial faz parte de um ciclo de movimentos artísticos e culturais que questionaram os limites entre o popular e o erudito e como tal produção chega a sociedade. O século XX assistiu ao crescimento dos meios de comunicação de massa que democratizaram e ao mesmo tempo retiraram o valor de exclusividade da obra artística. Nesse sentido, o que é erudito pode se tornar popular e o que é popular pode se tornar erudito, uma vez inseridos no meio de produção. O Movimento Armorial surge como uma proposta regional que se desafiou em se tornar universal através da valorização das raízes nordestinas dentro de uma estética clássica. Os mesmos pressupostos foram aplicados pelos modernistas e pelos tropicalistas, no entanto todos esses movimentos tinham em comum a necessidade de um meio de produção e divulgação pautados na industria cultural e na expansão da mídia. Assim, as obras fonográficas dos músicos armoriais nunca seriam analisadas se permanecessem fixas no seu contexto original, e não fossem ampliadas pela reprodução da obra de arte.

Anthero Madureira disse...

Queremos agradecer a todos/as que participaram e contribuíram muito para a realização da formação. Os excelentes textos aqui produzidos e publicados refletem o quanto podemos contribuir para que a Arte e a cultura sejam de fato instrumentos de luta e resistência, assim como o próprio Movimento Armorial apontou. Muito obrigado!

Anthero Madureira disse...

Luana, para abraçar os ideais armoriais devemos observar, pelo menos, aquelas características elencadas na formação, e estabelecer com coerência os elementos específicos para uma produção artística erudita (mesmo sabendo que esse conceito já está em ampla discussão).